light my fire

uaahhh, como eu gosto dessa sensação de ressaca. Meu corpo lento e podre, os órgãos esgotados, a cabeça grande e pesada, o resto todo amassado, e sede. Acordo cinco vezes pra beber do bico a água da jarra que sobrou. Acordo cinco vezes pra beber do bico a alma da farra que sobrou. Sede de líquido e sede de invisível, indizível. Acordo, e finalmente acordo atrasada, movendo só os globos oculares porque o resto dói, dói, e existe mais se dói mais. Me arrasto pelos afazeres devorando o prazeroso sentimento de ter esquecido os movimentos comuns. Derreto pelas cadeiras, limitando-me a sorrir, e minha boca não tem a menor vontade de abrir se não for pra jogar um bocejo fora. Caio de sono, mole pelos piores cantos dos ônibus, mas fervo por dentro. Fervo, fervo, fervo com todo o fogo que roubei de vocês na noite passada. Com toda a vida que chupei dos seus copos babados, acendo e fervo. Acho que fiquei com o isqueiro dela. Fiquei com muita coisa dela, e dele, e deles... e por isso FERVO! Agora muito mais do que antes, FERVO! É impossível não embriagar-se de ressaca! Não tem como não sentir esse borbulho interno que me sobrou de ontem. Essas bolhas de alma que fazem palpitar e dão vontade de correr e abraçar umas árvores, e escalar umas árvores e gritar bem alto, muito alto. Esse grito vai curar minha gripe, essa ardência ainda vai durar um tempo no meu estômago. Pegar fogo é remédio pra gastrite, mas não mata a sede. Sobrou pra hoje, como havia sobrado pra ontem e antes.

Isaías na minha retina

Isaías não tinha mais ninguém. Ajoelhado em frente ao fétido pôr-do-sol da orla mais imunda do Guaíba, de braços abertos e alma rendida; de olhos fechados e lágrimas apostando corrida... A cachaça de um lado, a desgraça no peito, e no beiço um toco de cigarro tragado como se fosse novo. Os dentes, bem como todos os seus parentes, já tinham se ido, mas os pés, esses eram companheiros fiéis! Os pés eram a sua casa, e sua casa cambaleava pelo mundo. Cambaleava porque pesavam as costas, pesavam os ombros, pesava a garrafa de 51 e os dedos ásperos. Pesavam os nós da barba, a craca detrás da orelha, pesava a pele negra curtida do sol e o analfabetismo. Isaías não tinha mais ninguém, e não tinha mais nada, mas pesava. E foi isso que o manteve de joelhos nas britas tempo suficiente para que o sol acabasse de deslizar no horizonte, iluminando as gotas que caiam por sua bochecha ossuda e magrela, fios dourados descendo pelo queixo, e misturando-se com o álcool respingado do último gole da cachaça comprada com a compaixão alheia. Era moeda de troca: A cada troco de pena que caía em suas mãos, o velho homem emprestava um pedaço de vida.

Lapsos de vergonha e lucidez pintavam as cores do poente em sua face escura. Escura de sujeira, de rua, nascença e meia-existência. A noite vinha num galope rápido e certeiro, e seu cigarro, já no filtro, havia apagado sozinho há bons minutos atrás. Abriu os olhos ao sentir a falta da luz da brasa acalmando suas pálpebras, catou a garrafa –já vazia- e botou-se de pé, sempre pendendo ao lado esquerdo. Isaías tinha mesmo sérias dificuldades para sair do chão. Era pesado e o mundo chacoalhava enganando seus dois seus pés descalços... Tornando impossível qualquer estabilidade sonhada debaixo do viaduto da Borges de Medeiros.

Dois passos à frente, abrindo sulcos nas pedrinhas dispostas no chão, três passos rápidos para trás e... Caiu de novo por cima das pernas. Sua cabeça, de tando peso, já não levantava, e assim aceitou que fosse sua posição diante da humanidade. Aceitou como quem aceita uma chicotada, e depois outra, e mais outra. Ficar de pé em tempos de cegueira é mesmo para poucos.

acid love

Zzzzzum, e aqui estou eu de novo, flutuando pelas ruas sem conseguir conter o êxtase que escorre pelo corpo todo. Meus poros se abrem a sorrir, meus ossos, meus músculos, meu sangue sorri, e tudo nasce e vive e pula para mim, tudo é novo, mesmo que não seja, e o mundo cresce correndo enquanto eu passo por ele vidrada em cada centímetro. Tudo é insuportavelmente interessante, tudo invade e satisfaz de dentro pra fora. Estou transando com a vida a cada esquina que atravesso, e acertam-me mil espadas a cada passo que dou. As lâminas penetram meus tecidos até o fim, estabelecendo um contato pleno que esquenta suas gélidas superfícies. Sangro se não sangro, mas já não tenho ferida alguma, ando de mãos dadas com o sentimento de que vivo, sentimento que começa me inflando por dentro, até transbordar pelo corpo todo. Primeiro sai pelos olhos, e esses olhos sempre famintos não precisam de muito pra saírem devorando amor afora. Já não me cabem mais sentidos que não possa só sentir, nem vida sem que me matem de amor. Sangro, sangro, sangro, sangro por que amo, e amo porque vivo.

Nunca gostei de me perguntar que diabo

Nunca gostei de me perguntar que diabo de força nos fez colidir. Nossas almas palpitantes já haviam se empurrado no balcão do bar, se raspado e roçado e pisoteado em um corredor e outro. Os olhares se correspondiam fixamente, tal imãs novos na geladeira velha da vida, enquanto corríamos em círculos, enquanto fazíamos parte de certa dança do acasalamento que se dá antes de qualquer outra coisa se encontrar.
Valia bem mais o externo ao interno, e vale.
As vezes ainda me pego querendo saber (ou afirmar) mais de fora, saber se aquela covinha do canto do meu olho ainda é legal. Mas aí eu entro nesses teus gigantes globos marrons e profundos e saltados, e decido ali que não preciso daquilo tudo que nos disseram necessário, daqueles pacotes enfeitados que embalam presentes, que embalam pessoas, que embalam vontades e verdades.
E eu aspiro e respiro teu cheiro de pele tua como se absorvesse esse velho baú de preciosidades resmungadas que estavam guardadas, estavam escondidas, porque alguém nos disse que deveríamos nos esconder. Não sei porque sempre dizem essas coisas. Acaricio fio por fio da barba suja, de sujeira antes guardada, sujeira que é cada passo dado, nem sempre à frente, mas todos bem andados, feitos de pés descalços nas terras. Passo, de leve, meus fios de cabelo por entre esses pelos andantes, e eles conversam. E são eles que me dizem que os caminhos coincidem, que os caminhos se cruzam, e são tranças e transas e transes nessa vida que começou melhor quando desembrulhamos um no outro amantes do mundo inteiro.

verdades à queima-roupa

Vago pelas ruas à procura de alma, e acabo sorrindo aos egos.
É tarde demais no copo vazio do bar da esquina para que minha boca saiba distinguir uma boa conversa sobre verdade. Ela segue falando, meus olhos fingem que encontram, e eu finjo que acredito. Ou vai ver acredito mesmo... Quem nunca confundiu cavalos com centauros, passadas algumas doses de excesso? Um brinde à mitologia embriagada, e outro, até que no dia seguinte os livros se fecham.
Atenta, me vejo já dentro do jogo. Um nonsense caminhar de seres, tapas de luva, canto dos olhos, metralhando a verdade à queima-roupa. Roupas que são armadura atrativa ao olhar e palavras vazias que só querem encher. Inflar. Relações para empanturrar por fora, e que dispensam a penetração. Brincadeira púbere de vai-e-vem que sacia como o ir e vir frenético da carne mordida no fim da foda demorada. Oscilando até no movimento de oscilar. Carapuças andando de mãos dadas, e fugindo pra lados opostos. Satisfação programada do desejo de sentir-se desejado. Tirar os corpos fora, cuidando sempre pra não pôr coisas demais pra dentro. A cretinice de querer do outro apenas a afirmação de si mesmo. Dois tiros no mesmo coração.

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Estou perdendo a batalha
bombas de medo
me aprisionam
nos verbetes do dicionário.
Significados
concretos
paredes
orbitam meu corpo nú
- que é igual ao seu, mas não pode ser.
Somos o que não sabemos mais ler.
(canhões disparam letras a esmo, letras que quebram janelas e estupram idéias).

derramo, amo

Não fossem tantos goles na mente
Sobre amor apenas sonharia
Mas revirar copos fartos, quentes
Desvendou o que quis e esquecia.

toda a nudez será bem utilizada

convite casualmente tímido
digitado aos sussurros
tiro de raspão
com os dedos à queima-roupa.
É sempre longe da roupa
que os dedos esquentam a alma;
e quanto mais arde por dentro
menos há por fora.
p'ra dar-se por certo:
mais lá fica o que cobre
bem aqui abrasa-se a vida.