Isaías na minha retina

Isaías não tinha mais ninguém. Ajoelhado em frente ao fétido pôr-do-sol da orla mais imunda do Guaíba, de braços abertos e alma rendida; de olhos fechados e lágrimas apostando corrida... A cachaça de um lado, a desgraça no peito, e no beiço um toco de cigarro tragado como se fosse novo. Os dentes, bem como todos os seus parentes, já tinham se ido, mas os pés, esses eram companheiros fiéis! Os pés eram a sua casa, e sua casa cambaleava pelo mundo. Cambaleava porque pesavam as costas, pesavam os ombros, pesava a garrafa de 51 e os dedos ásperos. Pesavam os nós da barba, a craca detrás da orelha, pesava a pele negra curtida do sol e o analfabetismo. Isaías não tinha mais ninguém, e não tinha mais nada, mas pesava. E foi isso que o manteve de joelhos nas britas tempo suficiente para que o sol acabasse de deslizar no horizonte, iluminando as gotas que caiam por sua bochecha ossuda e magrela, fios dourados descendo pelo queixo, e misturando-se com o álcool respingado do último gole da cachaça comprada com a compaixão alheia. Era moeda de troca: A cada troco de pena que caía em suas mãos, o velho homem emprestava um pedaço de vida.

Lapsos de vergonha e lucidez pintavam as cores do poente em sua face escura. Escura de sujeira, de rua, nascença e meia-existência. A noite vinha num galope rápido e certeiro, e seu cigarro, já no filtro, havia apagado sozinho há bons minutos atrás. Abriu os olhos ao sentir a falta da luz da brasa acalmando suas pálpebras, catou a garrafa –já vazia- e botou-se de pé, sempre pendendo ao lado esquerdo. Isaías tinha mesmo sérias dificuldades para sair do chão. Era pesado e o mundo chacoalhava enganando seus dois seus pés descalços... Tornando impossível qualquer estabilidade sonhada debaixo do viaduto da Borges de Medeiros.

Dois passos à frente, abrindo sulcos nas pedrinhas dispostas no chão, três passos rápidos para trás e... Caiu de novo por cima das pernas. Sua cabeça, de tando peso, já não levantava, e assim aceitou que fosse sua posição diante da humanidade. Aceitou como quem aceita uma chicotada, e depois outra, e mais outra. Ficar de pé em tempos de cegueira é mesmo para poucos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário